é um projecto de apropriação de uma cidade inundada. e a construção de uma outra. é uma proposta de mapeamento e destruição da cidade. uma provocação. um desdobramento da cidade e a consequência da sua deslocação para um palco. é uma partitura. e um conjunto de heterotopias. é tudo aquilo que já foi feito mas não por eles. é sobre o abate de árvores.
«Prometemos ficar calados, só a abater árvores» é uma proposta do Teatro Aveirense, em parceria com as Escolas Secundárias Homem de Cristo e Mário Sacramento, coordenada por Ana Raquel Ribeiro e com a colaboração de Ricardo Marques, Marco Martins e Hélio Morais.

6.11.10

{proposta 9}




Não existem personagens aqui.

«Era um abutre que me bicava os pés. Tinha já rasgado as botas e as meias e agora bicava os próprios pés. Bicava sempre sem parar, esvoaçava depois inquieto várias vezes à minha volta e retomava o trabalho.»
«Ouve-se o tinir da louça, uma criança que chora, um balde de água despejado, os gritos agudos das mulheres. Depois, uma voz fala grosso. Não se percebe o que diz. (...) As pessoas perdem-se em desvãos, degraus, cotovelos, nas penumbras da casa confusa. Está-se completamente só no meio dos outros.»«Ninguém parecia conhecer-me, nem mesmo ver-me.»

«Cidades são janelas em brasa com cortinas/ Puras, e pracetas com chuva entre aspas/Cidades são aposentos fixos/ Quer na cabeça, entre brasas, quer/ No gosto, na audição/ Barulho de passos, profundidade,/ Devotamento misterioso/ Crianças dotadas de uma inteira falta de intenção/Abertas a ligeiras canções tenebrosas e,/ Sobre as graves canções, fechadas/ Como pedras frias». «A cada passo levanta-se, assustada, uma canção, uma briga, o bater da roupa molhada, ruído de tábuas, choro de bébés, ranger de baldes. Mas temos de nos perder sozinhos por aqui para os perseguir com a rede de borboletas quando eles, cambaleantes, se soltam para esvoaçar no silêncio.»

«Quando vejo alguma coisa esquecida por aí, abandonada, levo-a comigo. Estou-me a lembrar do caso dos eucaliptos. (...) Levei-os comigo com a intenção de os devolver ao seu lugar. Quando cheguei a casa, deixei-os no meu quarto por um momento. Foi só um momento. O tempo de ir à biblioteca para saber o que comiam (...) Voltei a correr para casa não fosse tornar-se perigoso. Quando cheguei já era tarde. Já tinham dado em crescer. (...) Agora tenho um monte de árvores, tenho um bosque.» «Perdermo-nos numa cidade, como nos perdemos numa floresta, é coisa que precisa de se aprender.»

«Só poderia escrever sobre aquele lugar a falar de coisas monstruosas, inesperadas, desarticuladas. Que, acontecendo, se pervertessem». «E então penso: o lugar é terrível!».


{Imagens: «prometemos ficar calados, só a abater árvores», sessões 4 e 5. Textos: 1. franz kafka, «O Abutre», «Contos», Relógio d'Água, 2005. 2. Herberto Hélder, «Escadas e Metafísica», «Passos em Volta», Assírio e Alvim, 2001. 3, 5 e 7. Walter Benjamin, João Barrento (trad.), «Atrasado», «Ruídos» e «Tiergarten», «Imagens de Pensamento», Assírio e Alvim, 2004. 4 e 8. Herberto Helder, Lugar.  6. Pablo Albo, «Eucaliptos», «Diogenes», Kalandraka, 2010. 8. Maria Gabriela Llansol, 'Livro de Horas I», Assírio e Alvim, 2009.}

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